História dos trinta dias

 

 


 

Texto-fonte:

Obra Completa de Machado de Assis, Edições W. M. Jackson, Rio de Janeiro, 1938.

 

Publicado originalmente na Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, de Fevereiro de 1878 a Março de 1878.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FEVEREIRO DE 1878.

I

 

Assim como as árvores mudam de folhas, as crônicas mudam de título; e não é essa a única semelhança entre a crônica e a árvore. Há muitas outras, que não aponto agora por falta de tempo e de papel.

 

O caso é que quando eu cronicava a quinzena tinha diante de mim (ou antes atrás) um espaço limitado, um período cujos limites podia ver com estes olhos que a terra me há de comer. Mas trinta dias! É quase uma eternidade, é pouco menos de um século. Quem se lembra de coisas que sucederam há quatro semanas? Que atenção pode sustentar-se diante de tão vasto período?

 

Exemplo:

 

Houve no princípio do mês uma mudança ministerial, uma completa alteração na política do governo. Que virei eu dizer de novo trinta dias depois? Quinze dias, vá; ainda parece que a gente vê o sucesso; os acontecimentos não são de primeira frescura, mas ainda estão frescos. Um fato de trinta dias pertence à história, não à crônica.

 

Digo isto, leitor amigo, para que, se alguma vez esta crônica te parecer mofada, fiques sabendo que a culpa não é minha, mas do tempo — esse velho e barbudo Cronos, que a tudo lança o seu manto de gelo.

 

Menos nas minhas costas que neste momento parecem uma encosta do Vesúvio. Lá me escapou um trocadilho... não risco; antes isso que uma injúria.

 

Nem há outra utilidade nos trocadilhos.  

 

 

 

II

 

Enquanto se discute se a Câmara será ou não dissolvida, agora ou logo, vamos nós ficando dissolvidos lentamente, de maneira que em Março ou Abril não sei se restará um quarto ou um quinto de população.

 

Pela minha parte estou já dissolvido de todo, ou pouco me falta. Isto com que pego na pena, já não é mão, é um fragmento, um cavaco, uma réstia de ossos. Não tenho nariz; essa cartilagem com que me dotou a natureza, degenerou inteiramente, e com ela o vício de Paulo Cordeiro e o da curiosidade. Já não posso meter o nariz onde sou chamado e muito menos onde o não sou.

 

Há chuva; eu bem sei que de quando em quando caem algumas canadas d’água; mas o sol vinga-se desses intervalos, carregando a mão quando lhe chega a vez.

 

Por fortuna, o ano não é bissexto, de maneira que o Fevereiro apenas nos perseguirá com 28 dias. É uma consolação. O dia 1 de Março pode ser quentíssimo, horroroso; mas é uma consolação pensar a gente que está em Março, que o verão vai despedir-se por alguns meses!

 

No meio de todo este fogo, foi agradável saber que as chuvas  já caem no interior do Ceará. Ainda bem! Venham elas lá e cá, mas sobretudo lá, onde tantos milhares de irmãos nossos se viram a braços com o terrível flagelo. Nós temos o recurso de não morrer de fome; mas eles?

 

Agora é tratar de evitar outras.

 

 

 

III

 

Quem também evitará outras é a Sublime Porta.

 

Caiu enfim a Turquia, foi vencida pelo urso do norte, fato que parece alegrar a meio mundo, ainda não sei porque.

 

Por que? Porque são infiéis, dizia-me há dias um vizinho que não põe os pés na igreja.

 

Qualquer que seja a culpa, a verdade é que vamos ter a paz de Europa; e parece que dentro de pouco tempo os turcos estarão na Ásia.

 

Constantinopla deixará de ser a última cidade pitoresca da Europa. O formalismo ocidental (porque São Petersburgo é uma Londres ou uma Paris mais fria) vai ali estabelecer os seus arraiais. Adeus, cafés muçulmanos, adeus, caftans, narguilés, adeus ausência de municipalidade, cães soltos, ruas mal calçadas, mas pisadas pelo pé indolente de otomana; adeus! Virá o alinhamento, a botina parisiense, a calça, estreita e ridícula, o fraque, o chapéu redondo, toda a nossa miséria estética.

 

Ao menos, Constantinopla, resiste alguns anos até que eu te possa ver, e ir respirar as brisas do Bósforo, ouvir um verso do Alcorão e ver dois olhos saindo dentre o véu das tuas belas filhas. Faz-me este obséquio, Constantinopla!

 

 

 

IV

 

A colônia italiana nesta Corte vai celebrar uma sessão fúnebre em honra de Victor Manuel, o extinto rei cavaleiro.

 

Essa manifestação de saudade e adesão é digna dela e do ilustre príncipe.

 

Victor Manuel pertence já à história. O futuro julgará os acontecimentos de que ele foi centro e bandeira. Quaisquer que sejam as opiniões políticas dos contemporâneos ou dos pósteros, ninguém lhe negará qualidades notáveis e próprias do chefe de uma grande nação.

 

A digna colônia italiana do Rio de janeiro corresponderá, estamos certos, à ilustre memória e à grandeza de sua pátria.

 

 

 

V

 

Saltando outra vez ao nosso país, à nossa cidade, à nossa rua do Ouvidor, ocorreu neste mês, há poucos dias, o desaparecimento do Diário do Rio de Janeiro.

 

O  decano da imprensa fluminense mais uma vez se despede dos seus colegas. Longa foi a sua resistência, e notórios os seus esforços: mas tinha de cair e caiu.

 

Não me lembro sem saudades desse velho lidador. Não lhe tem valido talento nem perseverança, nem sacrifício. A morte vem lentamente infiltrar-se nele, até que um dia, uma manhã, quando ninguém espera, anuncia-se que o Diário do Rio deixa de existir.

 

Naquelas colunas mais de uma pena ilustre tem provado suas forças. Não citarei os antigos; citarei por alto Alencar, Saldanha, Bocaiúva, Vianna, partidos diferentes, diversos estilos, mas todos publicistas de ilustre nomeada.

 

E caiu o velho lidador!

 

 

 

VI

 

O Monitor Sul-Mineiro iniciou a idéia de monumento no lugar em que repousam as cinzas de José de Alencar. Esta idéia, comunicada ao Rio de Janeiro, foi saudada  pela imprensa com as palavras merecidas de louvor e animação.

 

Pela minha parte aplaudo com ambas as mãos o nobilíssimo projeto.

Já disse nessas colunas o que sentia acerca do elevado mérito do autor do Guarany; fiz coro com todos quantos apreciaram em vida aquele talento superior, que soube deixar um vivo sulco onde quer que passou, política ou literatura, eloqüência ou jurisprudência”

 

Levantar o monumento merecido é dever dos que lhe sobrevivem, é dever sobretudo dos que trabalham na imprensa, ou por meio de livros, ou por meio de jornais, que uns e outros foram honrados com os escritos daquele espírito potente.

Parabéns ao Monitor Sul-Mineiro.

 

 

 

VII

 

Um novo príncipe enche de regozijo a família brasileira, cujo augusto chefe reúne às mais elevadas virtudes cívicas as mais austeras virtudes domésticas.

 

Sua alteza a princesa imperial sente dobrarem-se-lhe inefáveis alegrias de mãe.

 

Ainda bem!

 

Digna filha da virtuosa imperatriz, saberá dar a seus amados filhos as lições que recebeu, e que a exalçam de nobilíssimas virtudes; lições iguais às que lhe transmitirá o ilustre príncipe consorte, educado na escola do velho rei que deu à França 18 anos de paz, de prosperidade e de glória.

 

 

 

MARÇO DE 1878.

I

 

O prazo é longo, mas desta vez a história é curta.

 

Porquanto: — eu não posso gastar cinqüenta resmas de papel a dizer:

 

— Que calor!

 

—Faz muito calor!

 

— O calor esteve horrível.

 

—  Estamos ameaçados de uma horrível seca!

 

—Etc.

 

—Etc.

 

Posso? Não posso. Seria matar-me a mim e ao leitor, — dois casos graves, e não sei qual deles mais grave, não sei. Talvez... não, não digo; sejamos modestos e não magoemos o leitor.

 

Ora, a história do mês passado não é outra. Aqui e ali um acontecimento, raro, medroso e pálido com algumas exceções), mas a grande história, essa pertence ao fogo lento com que este verão assentou de matar-nos.

 

Felizes os que verão a Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, todas essas cidades de nomes gregos ou germânicos, e clima ainda mais germânico do que grego. Esses não sabem o que é pôr a alma pela boca fora, trabalhar suando, como suam as bicas da rua; não sabem o que é ter brotoeja, não dormir, não comer, e (daqui a pouco tempo) não beber ...

 

Tu e eu, leitor agarrado à capital, tu e eu sabemos o que foi o demônio do Fevereiro, mês inventado pelo diabo. Logo, escusa contar-te a história do calor, que tu sabes tanto como eu, talvez melhor do que eu.

 

 

II

 

Disse acima que os sucessos forma pálidos, com algumas exceções. Exemplifico: a eleição na Glória, onde foi um pouco vermelha.

 

Correu sangue! Mas por que correu sangue? Quem o mandou não ficar parado, como tílburis sem frete, ou como os relógios sem corda? Não sei; mas a verdade é que ele correu e a igreja ficou interdita.

 

Pessoa que assistiu ao rolo diz-me que os altares foram invadidos por grande porção de gente ali se refugiou para escapar a algum golpe sem destino. Donde concluo que a religião não é tão inútil como a pintam alguns filósofos imberbes. Ao menos, se não faz respeitar o sagrado recinto, serve de refúgio aos cautelosos.

 

Valha-nos isso !

 

Uma eleição sem umas gotinhas do líquido vermelho equivale a um jantar sem as gotinhas de outro líquido vermelho. Não presta; é pálido; é terne; é sem sabor. Dá vontade de interromper e bradar:

 

— Garçon! un peu de sang, s’il vous plait.

 

Quando chega a morrer alguém, minha opinião é que a eleição fica sendo perfeitíssima — opinião que talvez não seja a mesma do defunto.

 

Mas o defunto teve uma grande consolação; morreu no posto de honra, no exercício dos seus direitos de cidadão. Bem sei que a morte é a mesma, mas antes isso que morrer de febre amarela.  

 

 

 

III

 

A febre amarela foi outra página do mês. Epidemia não há; mas... têm morrido algumas pessoas.

 

Dizem que depois do Carnaval, cujas festas costumam ser delirantes, a febre levantará o estandarte epidêmico, e levará tudo até o Caju. Isto me disseram dois médicos, e creio que é a opinião de todos os outros. O remédio parece fácil, não é? Facílimo: adiar as festas do Carnaval para o inverno. Duvido muito que os festeiros suportassem a mudança.

 

Ergo, cemitério.

 

 

 

IV

 

E acabou.

 

Acabou, porque a morte do papa e a eleição do papa não são acontecimentos que me pertençam; pertencem à história do mundo e do século; eu narro os casos da cidade.

 

O que posso é saudar destas páginas o novo Pontífice, a quem desejo longos dias, pacíficos e prósperos.

 

 

 

ABRIL DE 1878.

I

 

Se soubessem o desejo que eu tinha de lhes inventar agora cinco ou seis petas! Algumas delas havia de pegar, e uma que fosse recompensava o trabalho. Lembrou-me, porém, que, se esta crônica é escrita no dia 1 de Abril, não será lida antes de 6 ou 8, e, portanto, perdia o meu latim. Voltemos ao português.

 

 

 

II

 

Dos trinta dias que passaram, o maior foi o 25, primeiramente porque era aniversário do juramento da constituição, depois porque nesse dia foram distribuídos os prêmios da exposição nacional e da exposição de Filadélfia.

 

Sua Majestade, como sempre, presidiu à solenidade e fez a distribuição dos prêmios concedidos, sendo a cerimônia inaugurada por um discurso de sua alteza o sr. Conde d’Eu.

 

A mim nada resta mais do que apertar a mão aos premiados, desejando-lhes muitos outros dias como aquele. Pena é que não possa ser tão cedo! É talvez melhor que haja um intervalo maior, para ainda mais se aperfeiçoarem os concorrentes e aparecerem outros novos. Até hoje o que se tem visto é que o número das recompensas cresce de exposição para exposição.

 

Infelizmente, não podemos ir a Paris, no que andamos com juízo, porque não havia tempo nem sobram recursos. Façamos como os particulares, que primeiro economizam para viajar depois. 

 

 

 

III

 

A venda do Indepedência foi outro caso importante do mês, e não tenho mais do que felicitar os leitores da Ilustração por esse fato.

 

Poucos indivíduos na ordem naval terão sido tão falados como esse famoso Independência. Teve amigos e inimigos, sem que uns nem outros o conhecessem. Se alguém o dizia simpático e dotado de virtudes patriarcais, outros o achavam insolente e egoísta. Para estes era um Adônis, para aqueles um feiarrão.

 

Vai senão quando, o governo inglês propõe comprar o encouraçado, e o governo brasileiro aceitou o excelente negócio, e viu-se livre de uma grande despesa anual.

Tanto melhor!

 

Os trocadilhos que já se tem feito com o fato da venda do navio reduzem-se a um só: — ficamos sem Independência. Ah! Senhores, um pouco mais de imaginação. S'il vous plait.

 

 

 

IV

 

A morte do conselheiro José Thomas Nabuco de Araújo foi a grande mancha na história dos últimos trinta dias.

 

O que perdeu o país nesse homem ilustre e sábio, não é preciso que o digamos aos leitores da Ilustração.

 

Jurisconsulto profundo, parlamentar distintíssimo, político moderado, era um dos homens mais notáveis da geração que vai desaparecendo. Como Zacharias. sua morte foi inesperada e a todos tomou de sobressalto. Hoje repousa no eterno leito, deixando na história largo sulco de sua passagem.

 

Dizem que deixou pronto o projeto do Código Civil. Tanto melhor! Teremos, enfim, código, e redigido por mão de mestre.

 

 

 

V

 

Termino afirmando que tive pena de não ir ao baile costumé de Petrópolis, um dos acontecimentos do mês. Que querem? Não vai a Roma quem quer; se assim não fosse, tinha eu assistido ao conclave.

 

Dizem que o baile esteve soberbo, e deixou as mais agradáveis recordações; citam-se magníficos trajes; a boa animação; a geral alegria. Enfim, terminou quase de manhã.

 

E com fresco! Oh! Petrópolis!